30/08/2015
Exatamente neste momento, enquanto publico este texto, está sendo
enterrado o filho de uma amiga, Maria Angélica Raphael, assassinado na noite de
ontem, aos 21 anos, sem que até agora ninguém saiba informar o que realmente
aconteceu.
Em consideração a este momento e à dor desta mãe que lutou alucinadamente pela vida de seu filho, vou adiar a publicação
que regularmente faço neste blog, alusiva ao meu trabalho na Câmara e à rotina
do processo legislativo.
Mas, vou deixar aqui, pra reflexão, um texto que publiquei em 15/09/13,
em meu blog “Associações Livres”, comemorando o cinquentenário do discurso de
Martin Luther King – “Eu tenho um sonho” –, proferido ao final da Marcha de
Washington, em 28/08/63, no qual, ele ‘sonha’ com aspirações democráticas históricas
de igualdade de direitos e justiça social.
É claro que, por agora, nenhuma acusação infundada cabe sobre este caso.
O que escrevi é apenas o registro de uma realidade, seguido do meu sonho.
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Foto de Pierre Verger |
MARTIN, EU TAMBÉM TENHO UM SONHO
ESTAVA ISOLADO em minha ilha digital – o ano era 1963 – unindo minhas mãos as
outras milhares de mãos que aplaudiam o discurso/manifesto de Martin Luther
KING, no qual ele pedia, mais que equiparação de direitos aos negros,
que se faça JUSTIÇA sobre a terra. O sonho de um mundo colorido aos
pretos e brancos da terra. Acordado, sonhando. As palavras de Mr. King ecoam,
cinqüenta anos depois, ecoam e calam fundo meu coração. É impressionante sua
atualidade.
ESTAVA EU, isolado em minha ilha digital – o ano é 2013 – e recebo como de dentro
de uma garrafa que navegou ondas na internet, um pedido de socorro: Maria
Angélica RAPHAEL pede, mais que equiparação de direitos aos negros, que
se faça JUSTIÇA sobre a terra. Ela se desnuda quando fala do
envolvimento de seu filho com as drogas. E se diz ameaçada, com muito medo, e
pede socorro.
“Não podemos ficar satisfeitos enquanto o negro for
vítima dos horrores incontáveis da brutalidade policial”, diz Martin.
“Aproveitando a deixa, quero deixar aqui expressado
que meu filho desde domingo está sendo ameaçado por um policial”, diz Maria.
Martin é Mártir. Maria é nossa Martin.
O MÁRTIR É aquele que morre pela fé. Maria Angélica é uma mulher de fé: presidente
de uma instituição que agrega cerca de 60 associações de bairros e distritos –
sem receber nenhum centavo para exercer esta função – o é mais pela fé de que
as coisas podem melhorar. Mulher. Negra. Pobre. Até pouco tempo
trabalhava na colheita do café – uma atividade sazonal – para ganhar a vida.
Ela se aproxima, neste apelo, a um grupo de vítimas que, por denunciarem o
suposto abuso de poder – sob todas as formas – destina-se a serem calados pela
força injusta de mãos truculentas.
O MEDO É um sentimento quase insuportável. Apesar disso é um sentimento
necessário que, uma vez contido, protege. Mas, é preciso uma mente alargada
para contê-lo. Quando isto não é possível – como nas crianças – a tendência de
quem se vê ameaçado, é eliminar, pela evacuação sobre o outro, este medo que
não foi possível ser sentido. Assim, num processo de ‘identificação projetiva’,
é o outro quem passa a sentir o medo. Lembre-se, por exemplo, dos ‘pixotes da
vida’ que nos colocam freqüentemente em posição de ameaçados por sua postura
arrogante e intimidadora. Exercitam amplamente este mecanismo de negação e
subseqüente projeção sobre o outro. Algo que se tornou meio de vida.
DE VÍTIMA A ALGOZ. E há sempre argumentos a serem elencados na aplicação da força. Quando
então a questão das drogas está em voga, é mais fácil ainda defender o uso da
força contra o drogado. Ninguém responsabiliza o pai ausente que fez o filho e
o abandonou, mas culpa o menino que não aprendeu a defender-se melhor na vida e
tem no uso de drogas seu refúgio pessoal, ou no pequeno tráfico, sua fonte de
conseguir drogas para uso próprio. De fato, vivemos em uma sociedade cindida,
que idealiza alguns enquanto marginaliza outros. Não há políticas públicas
suficientes para uma abordagem razoavelmente eficaz no tratamento de drogados:
o uso de drogas tem sido tratado mais como um problema de polícia que um
problema de saúde.
HÁ 50 ANOS o mundo estava dividido entre negros e brancos. Hoje, o
preconceito ganhou novos protagonistas que se dividem entre saudáveis e
doentes. Há um preconceito contra o doente, em especial, contra os doentes
mentais. A constatação de sua existência é vivida como uma afronta ao
narcisismo social. Os deficientes, de toda ordem, desequilibram a balança da
perfeição na qual nascemos medidos. A feiúra do doente mental – drogados,
deprimidos, psicóticos, alcoólatras – agride os modelos de beleza que se espera
ver no homem moderno. Enquanto estavam excluídos em suas casas, guetos,
leprosários, manicômios, pareciam não existir, mas com as políticas atuais de
inclusão, têm sido vítimas de olhares de soslaio e rejeições contumazes, que a
despeito do discurso vigente, não encontram oportunidades reais de efetivação
de sua cidadania.
O GRITO DE SOCORRO de Miss Queen está doendo em mim. Marias e seus gritos nada
angelicais povoam como fantasmas a ilha na qual eu me escondia. Anônimas, pedem
um nome. Pedem, não por elas, mas por seus filhos. Pedem agora que empreste a
elas minha voz. Cinqüenta anos depois do sonho de Martin, o lombo arcado por
pesada sina, o sonho da maternidade conspurcado por abortos sociais e a faca
amolada do poder tangendo os pescoços que seguram suas cabeças incrédulas, elas
vêm dizer:
“EU TENHO UM
PESADELO. Todas as noites, sonho que estou indo visitar meu filho que
está preso e eles me revistam junto a outras mães, e nada descobrem, mas hoje,
sonhei que quando eles me revistavam eu estava novamente grávida e, ao abrir as
pernas, o bebê nasceu, e eles me disseram que ele ia ficar ali mesmo, preso,
porque senão ele também ia começar a usar drogas e ia dar muito trabalho. Eu
chorava e gritava por minha mãe. As outras mulheres se foram, e eles levaram
meu bebê. Eu voltei pra casa. E, desde então, todos os dias, vinha um policial
na minha porta pra saber se eu estava grávida de novo”.
MARTIN, EU TAMBÉM TENHO UM
SONHO: a dama da justiça abrirá seus olhos sobre todos, e
os homens não mais serão julgados pelo que têm, mas pelo que são. A sombra na
qual se escondem os excluídos cederá à luz dos direitos constituídos. As
mentiras, inibidas pelas verdades reveladas serão veladas. Aos nossos filhos
não faltarão seus pais. Os velhos permanecerão vivos na memória dos jovens.
Educação não será privilégio das escolas, porque ensinar terá o mesmo valor que
aprender. O conceito de saúde não se limitará à ausência de doença. Em nossas
mesas não faltará o pão, nem o pai, a mãe e o irmão. Em todas as cidades haverá
teatros nos quais, como nas igrejas, todos terão assentos cativos e, aos
artistas, será dada a mesma importância que se dá aos santos. Livros serão
lidos. Leis serão cumpridas. Laços serão refeitos. Haverá vida antes da morte!
E, quando esta chegar, será a última lição de humildade que todos os dias a
vida tentou nos ensinar.
"A Carne", com Elza Soares
"Ain't Got No, I Got Life", com Nina Simone
"I'm Black/ Ain't Got No", cena do filme Hair
"I Have a Dream", com Martin Luther King
Entrevista com o condenado pela morte de Martin L. King, no Fantástico
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